Escritor dinamarquês ao optar pela fantasia percebeu a inviabilidade de um mundo que tinha como primado o mito do progresso
A taverna frequentada por Hans Christian Andersen em Odense, na Dinamarca, foi fundada em 1506. Dizem que sobre uma de suas mesas ele teria escrito o famoso conto “O soldadinho de chumbo”. Era uma chuvosa noite de primavera, e o escritor sentia-se desenganado do amor da bela Jenny Kind. A taverna existe até hoje e chama-se “Tinsoldaten” (soldadinho de chumbo), em sua homenagem. Talvez Andersen, que nasceu na mesma Odense, em 1805, e faleceu em Copenhague, em 1875, não se sentisse muito confortável por ter-se tornado famoso como autor de contos de fadas. Antes tivera uma extensa e ambiciosa produção literária escrevendo romances “sérios”, que hoje já não são lidos, e com eles já havia conquistado a Europa. Mas foi com o gênero chamado conto de fadas que conquistou o mundo.
Como define bem o escritor brasileiro de origem dinamarquesa Per Johns, conto de fadas em escandinavo é eventyr ou äventyr, literalmente uma aventura, com o significado de viagem, “a viagem de uma vida – de rumo incerto, mas fascinante. Abarca tanto a pura narrativa de um acontecimento fantástico como o périplo do espírito que sai mundo afora em busca do destino, em vez de esperar que ele chegue. O que equivale a dizer: ou se vive uma vida como uma aventura que se renova a cada dia ou não vale a pena vivê-la.”
Devemos encarar suas histórias sob esse ponto de vista. Cada conto é uma aventura em que o ser humano se desprende de suas limitações para assumir o próprio destino, mesmo com todos os riscos que essa possibilidade apresenta. Em muitos de seus contos está presente essa viagem e aventura.
“O companheiro de jornada” é a aventura de um homem pelo mundo. Perde seu amado pai e parte com a intenção de ser uma boa pessoa. Leva apenas algumas moedas, tudo o que herdara, mas não demora deixá-las nas mãos de bandidos que profanavam um cadáver. Viaja pelo mundo com um companheiro recente, que o protege durante a maior parte do tempo. Em “Os cisnes selvagens”, observamos onze cisnes que cruzam constantemente um oceano. Há a irmã que sai em busca deles, na verdade príncipes transformados em aves. Eles passam o dia inteiro em pleno voo, transformando-se em homens apenas durante a noite. E por último “As galochas da fortuna”, adorável história que apresenta várias personagens que ao vestirem os misteriosos calçados têm os desejos realizados, viajando inclusive para outros tempos.
Muitas vezes estigmatizado como autor de literatura infantil ou infanto-juvenil, rótulos que, como disse certa vez a escritora Roseana Murray, são de necessidades mercadológicas, Andersen acabou por não ser lido pelo público adulto; a exceção ocorre apenas quando esses adultos resolvem contar as histórias do autor dinamarquês para os filhos. Mas é um grande equívoco olhar o escritor dessa maneira. O que teria de literatura para crianças ou mesmo para jovens contos como o próprio “O soldadinho de chumbo” ou “A menina dos fósforos?” Talvez uma criança sinta-se entristecida ante os percalços da vida ao ler essas histórias numa idade em que ainda deveria primar pela esperança de felicidade que todos têm no coração desde cedo, e pela crença de que as brincadeiras são eternas.
Na verdade esses contos são de plena profundidade; discutem o sentimento amoroso, a beleza, e também os acasos que nos desviam da rota que gostaríamos de estar trilhando. Em “A menina dos fósforos”, há a solidão de uma pequena criança numa noite de natal; a menina está com um frio terrível e faminta, a única constatação é de que apenas o mundo do sonho é possível. Seu sofrimento é tanto que esse mesmo sonho acaba por misturar-se ao desejo de morte quando ela sente próxima a presença da avó falecida.
Andersen escreveu numa época em que a maior parte dos habitantes das cidades europeias vivia em extrema penúria. Era uma Europa com a permanente ameaça de guerra, de frio e de fome. Junte-se a isso a reflexão sobre o que há de mais recôndito e de mais sórdido na alma humana. O escritor encontra na fantasia a solução para todos esses problemas. E, como ocorre muitas vezes, quando a morte ameaça uma criança doente num leito, cuja mãe se esvai em lágrimas sem encontrar solução alguma, a viagem final se dá em companhia de um anjo de rosto radiante e belo, que conduz o pequeno infante à presença de Deus, como ocorre no conto do mesmo nome: “O anjo”.
É sempre bom comentar a respeito das boas e belas edições. Contos de Andersen (Paz e Terra, 463 páginas) não é uma edição nova. O exemplar que me chegou às mãos creio é da última, datada de 2002, com tradução direta do dinamarquês por Guttorm Hanssen e revisão estilística do saudoso Herberto Sales. O livro tem ilustrações do original em dinamarquês.
Vale a pena ler os quarenta e oito contos do livro, para que se tenha uma idéia correta desse grande clássico da literatura universal. São histórias que muitos de nós conhecemos apenas porque ouvimos um dia, ou assistimos no cinema ou televisão a alguma adaptação. E por melhor que tenha sido realizada, não é possível compará-la à beleza que essas histórias possuem quando aparecem em livro, e com o texto integral.
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